MESTRE ANTONIO (in memoriam)
(Elza
Linhares – in memoriam)
No recuo ao passado vejo meu pai, no
barracão do quintal, frente ao bloco de argila ainda disforme. Avental preso ao
pescoço, descendo até os joelhos,os olhos verde-azuis contemplam a massa que
ele vai moldar. Seus dedos são como espátulas, nas pontas achatadas, que o
tempo e o trabalho acabaram por marcar. Em volta, os filhos, indiferentes à
grandeza do instante, brincam com o barro mole, de fazer caras, bichinhos com
pernas de palitos de fósforo, petecas. Eu entre eles...
O mestre começa a sua obra, que
pouco a pouco vai tomando forma. Dia a dia, vai plasmando a matéria,
aperfeiçoando os contornos, quando então faz uso das ferramentas do mister.
Não raro toma um filho como modelo,
geralmente o mais velho, para produzir-lhe os detalhes das mãos, dos olhos, do
nariz, ou outros, e até as costelas, se se trata do Cristo Crucificado.
Das mãos de mestre Antonio nascem
então santos, anjos, bustos, ornatos, quanta coisa! Deixo o cenário e ponho-me
a pensar....
Sua modéstia imensa, seu
desprendimento dos valores materiais, talvez tudo isso tenha contribuído para
que não o tivéssemos entendido e lhe dado o devido valor no tempo certo. E a
falta de incentivo, de reconhecimento maior da obra daquele que cultuou a arte
de Aleijadinho, foi a pá-de-cal que enterrou a chance de glória de um grande
escultor e competente restaurador.
A escultura, um dom natural, era uma
ocupação alternativa, diria que esporádica, pois a sua profissão principal, a
que lhe possibilitava manter a família numerosa, era a construção civil, na
qual se destacava com muita capacidade, em que pese a falta de formação
universitária.
Emocionada, desperto das divagações
e retorno ao dia de hoje. Ele já não está aqui. É tarde, muito tarde, para lhe
dizermos que o admiramos, que vemos nele o grande artista que foi, por poucos
conhecido talvez, mas de quem nos orgulhamos e por quem sentimos uma grande
mágoa de não o ter reconhecido condignamente e exaltado antes, muito antes, como
merecia.
Nascido
a 17 de fevereiro de 1901, em Valadares, Vila Nova de Gaia, Porto – Portugal,
Antonio Pereira da Costa era filho de Joaquim Pereira da Costa e Maria Rosa
Costa, também portugueses.
Seu pai, integrando um grupo de
artistas imigrantes portugueses e italianos, veio para o Brasil (Rio de
Janeiro) por volta do início da segunda década dos anos 1900, a fim de executar
trabalhos da sua arte,já que era escultor e estucador nato, aqui se naturalizou
brasileiro.
Com a morte de sua mãe, Antonio
Costa deixou sua terra-pátria e veio também para o Brasil, onde chegou a 24 de
setembro de 1914, então com treze anos e meio de idade, passando a ajudar seu
genitor, a essa altura já em Belém, na execução de ornatos do Palacete Bolonha,
nesta cidade.
Ao perceber que precisava
aperfeiçoar a sua arte, foi para o Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola de
Belas Artes, onde permaneceu de 1917
a 1920, quando, por falta de recursos, teve de abandoná-la
e retornar a Belém. Antes,porém, executou trabalhos artísticos no prédio do Rio
Cassino, dentro do Passeio Público, ao lado do Palácio Monroe.
Em 1921,viajou para São Luís do
Maranhão, com a incumbência de esculpir a imagem de Nossa Senhora da Conceição,
no frontal da Catedral da cidade.
Ainda em 1921, juntamente com seu
pai, foi para Manaus, onde os dois realizaram trabalhos de restauração na
fachada do Teatro Amazonas.
Antonio Costa casou-se em 1922 com a
pernambucana Lydia Bezerra da Silva, com quem teve oito filhos: Erotylde, José,
Elza, Maria Rosa, Joaquim Agostinho, Antonio Filho, Mário e Terezinha.
Em 1923, foi chamado novamente a São
Luís, para esculpir o busto do então governador do Maranhão, época em que
nasceu a sua primeira filha, Erotylde, a única maranhense.
Ainda em São Luís, esculpiu também
o busto do Dr. Tarquínio Lopes Filho, proprietário e diretor da “Folha do Povo”
do Maranhão (v.foto).
Instalando-se em São Luís, seu pai,
Joaquim Costa, lá montou uma fábrica de artefatos de cimento, como mosaicos e
marmorites, transferindo-a, anos depois, com toda a maquinária, para Belém do
Pará, com o nome de “Plástica Paraense”, à Tv. Três de Maio, passando a
fornecer mosaicos e outros produtos de melhor qualidade para casas comerciais,
igrejas (Capuchinhos,p. ex.), Colégio Santo Antonio e várias outras
construções. Muito tempo depois, com o falecimento de Joaquim e com a venda do
prédio da fábrica, por motivo de força maior, Antonio removeu as máquinas para
um modesto barracão no quintal de sua residência, à Tv. Mercedes, no Marco,
onde, com o nome de Fábrica “São José”, continuou a fornecer aqueles artefatos
para obras de construção no Estado.
No Amapá, então Território Federal,
a primeira viagem de Antonio Costa deu-se à época da Segunda Guerra Mundial, levado
pelos americanos, com quem havia trabalhado na construção da Base Aérea de
Belém, para participar da construção da Base Aérea do Amapá. Mais tarde,
retornou ao Território, e ali deixou várias obras.
Existe em Macapá uma rua com o nome
de Antonio Pereira da Costa, no bairro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
homenagem da Câmara àquele que contribuiu com o seu valioso trabalho para o
crescimento do Território Federal do Amapá, depois elevado a Estado.
O artista, humilde por natureza,
pois permaneceu pobre até os últimos dias, faleceu aos 82 anos de idade, em
1983,no mesmo hospital que construíra, em Macapá, exatamente a 3 de julho, dia
em que, por “ironia do destino”, estaria retornando a Belém, para conviver
definitivamente com seus filhos, netos e bisnetos (a esposa já era falecida).
Voltou para Belém, sim, mas para aqui ser enterrado.
Como legado aos seus descendentes,
deixou o exemplo maior de dignidade, integridade moral e amor ao trabalho.
(Erotylde Costa Leite)
Era
um avô carinhoso.
O barracão da casa da “vovó Lídia”,
onde ele trabalhava, era o parque de diversões dos seus netos, o que o deixava
bastante apreensivo, pois poderíamos nos machucar, mas nunca zangado comigo,
sua neta “Titinha”. Mais tarde foi morar em Macapá-Ap e apesar da distância era
um avô presente.
Quando chegava de viagem em Belém,
saía do aeroporto direto para a loja do meu pai. Trazia nas mãos uma pasta de
estudante, de couro, com fecho de uma lateral a outra e sua mala velha amarrada
com barbante – era uma graça ! Não tinha
vaidades bobas! Dentro da mala, por vezes, trazia as pedras de manganês que eu
pedia. Também trazia duas garrafas “embrulhadas” em jornal, um com liquido
amarelo e a outra vermelho...um era groselha e o outro não lembro, mas eram
xaropes que misturados com água ficavam uma delícia. Da loja do meu pai íamos
almoçar em casa. Depois ele descansava um pouco na rede do último quarto e mais
tarde, um dos meus irmãos o deixava na casa da vovó Lídia. Era uma rotina
gostosa!
Quando estive em Macapá, meu pai e
eu estávamos numa “vendinha” conversando com o proprietário, esperando o vovô
passar por ali... era seu caminho... Alguém disse: - Lá vem seu Costa! Imediatamente
meu pai me escondeu. Com a alegria do encontro, meu pai disse que havia levado
uma surpresa pra ele.. aí eu apareci... Pôxa, que abraço, vô!
Sinto não ter tido tempo suficiente
para aprender um pouco da sua arte, talvez pela minha pouca idade, na época em que
ele vivia em Belém. Desconfio até que a sua paciência em deixar seus netos
brincarem no barracão era a sua esperança de que a gente desse continuidade ao
seu trabalho... quem sabe?
Meu pai contava que “Seu Costa” não
podia passar por uma construção civil sem tocar na massa de cimento, e quando
não concordava com a qualidade, chamava o responsável e reclamava. Tinha a
exigência de um apaixonado... um perfeccionista!
Numa ocasião, fui a um chá-de-panela
de uma prima, onde hoje é a sede da APAE e me peguei admirando o local, mais
precisamente os ornatos. Observando os anjos em gesso, reconheci o rosto da
minha mãe ainda criança. Comentei com ela e ela lembrou que seu pai havia
tirado o molde do seu rosto para fazer os anjos.
Até hoje sinto falta do Vovô Antonio.
Distraída, por muitas vezes, penso: o vovô está demorando a chegar.... e logo
depois lembro que ele não está mais aqui.
Um dia, muito deprimida, quando consegui dormir sonhei com ele - eu já com meus trinta anos de idade – nos abraçamos e trocamos algumas palavras... foi acolhedor! Acordei bem disposta e parecia que não havia problemas no mundo. Uma sensação de paz, uma satisfação, uma alegria de viver... Se os espíritas estão certos, nós nos encontramos, pois o sonho era muito real – lembrei-me detalhadamente de seu rosto, senti seu abraço de avô e falamos coisas reais, ou seja, sabíamos que estávamos em “mundos” diferentes, e por algum “milagre” ou “canal dos sonhos” nos encontramos:
-Vovô,
o senhor não vai acreditar... sabe que até hoje tenho todas as pedras de
manganês que trazias pra mim quando eu ainda era pequena?
E
ele me abraçou e disse sorrindo:
-Que
besteira, minha filha....
Não esqueço da sua alegria em me
rever, mesmo quando morava em Belém e me via quase todos os dias e todos os
domingos... dizia, com seu sotaque ainda forte de português: “ Titinha minha
neta” – e me dava um abraço gostoso de avô querido e um beijo na testa. Muita
saudade!
Maria Cristina da Costa
Rocha
Que surpresa agradável tua redação e teu avô: coisas que não compartilhamos enquanto juntos! Amei a origem dos rostos do anjos e tua coleçaõ de pedras e, ainda mais, o comentário dele: "besteira!". Típico dos homens que amam tão contidamente que parece nem amar!
ResponderExcluirQue bom que gostaste! Vindo de ti quanto a minha redação... sabes que adoro as tuas! Sobre o rosto dos anjos, pretendo colocar as fotos lado a lado - da minha mãe quando criança e dos anjinhos no teto da APAE, mas ainda não fui lá. E sim, ele era contido, mas nos sentíamos amados porque seus olhos e atos falavam.
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